O que esculpe o mar é a coragem do mar

      O mar é só o mar, desprovido de apegos, matando-se e                                                   recuperando-se, correndo como um touro azul por sua própria                                                              sombra, e arremetendo-se com bravura contra ninguém,                                                                                 e sendo depois a pura sombra de si mesmo,                                                                     por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Cecília Meireles

A dedicação com o corpo atlético, a lapidação ao extremo até encontrar o perfeito equilíbrio entre a estética e o apuramento de si, é a concepção inicial do ideal grego para uma vida bem vivida. Fabricação de um novo sujeito a insurgir contra toda forma de opressão não deixando de levar em consideração as vicissitudes entre o corpo e a alma. Não é na alma que arrebata o corpo com violentos movimentos de desejo e apreensões onde deve ser exercido o autocontrole. É precisamente no intervalo, no lugar onde se tocam corpo e alma, interferindo cada um no outro com suas mazelas, com sua miséria que deve haver uma sóbria vigília.

Aquele que se põe ao cuidado de si a exemplo dos gregos desperta no corpo método e vigilância, mas existe uma intensa relação com o outro, uma mutualidade, uma prática social agindo na relação entre aqueles que se encontram em estado de sofrimento e devem ser orientados com os seus orientadores. Não funciona como uma relação vertical de mestre e aprendiz, é uma relação entre amigos, no qual um é o esteio do outro, mais: um é obra do outro. Sêneca diz a Lucílio: você é minha obra. Isso altera todo significado dado ao ato de educar, pois educar é parte do cuidado de si, no tempo sincrônico em que esculpir o outro, ao tentar lhe educar ou confortar, vai além vislumbrando o equilíbrio. Acordar do efeito nefasto das doenças que acometem a alma, ao ser domado por elas faz do homem espectro de si. É preciso tratamento das dores que acometem a alma para se expurgar seus movimentos involuntários, dissonantes do bem-estar. É na assimetria entre o eu que penso conhecer e sobre forças que agem em mim de maneira muitas vezes brutal, despertando monstros, contendo sobre os ombros dores, testando a força de existir, que invenção ética se aprimora, é num estado assim de imensa fragilidade que a prática do cuidado de si será posta à prova, que o corpo adquirirá também resistência e conhecimento que o fortalecerá. Há um troca de experiência na atividade do cuidado, nessa prática é melhor que não se esteja só, a cooperação nos momentos necessários assegura o continuum, um plano de imanência gerado por uma rede criada por afinidade e cuidado, um território de afetos com base na mutualidade.

Território ascendente, pois se trata de uma multiplicação de potência irradiante: se tornar um esteio, não abrigo piedoso, não é disso que se trata aqui, o sentido é o de despertar o outro do estado de alucinação das paixões, ou do transe que as dores sucumbem, agitar até que se depure o efeito anestésico que repetidas experiências nos imprimem ao longo da vida. Esculpir o outro, mais do que lhe ensinar, é educar-se a si mesmo, como diz Sêneca:

                                                           A habilidade do lutador se mantém pelo exercício da luta; um acompanhante estimula o desempenho dos músicos. Do mesmo modo, o sábio necessita manter suas virtudes em alerta: assim, ele próprio estimulando, recebe ainda de outro sábio o estimulante.

O cuidado de si cultivado pelos gregos na arte de se construir, se inventar, tem como questão central a relação. A investigação se delineia primeiramente pelo o que vem a ser o si mesmo. Si mesmo é o que somos quando nos deparamos com relações nas quais nos servimos do mundo e dos outros, nas relações que envolvem o saber, e quando nos confrontamos com grandes crises, existenciais ou sociais.

O si mesmo é a alma do sujeito. Uma alma que não seja transcendental, não é a alma que se serve do corpo, é sim a alma que irá se relacionar tanto com o corpo, com a linguagem, com os instrumentos. A alma é o sujeito da ação que se serve das coisas do mundo. Talvez aqui possamos fazer um parêntese pois é crucial que se entenda o que dá significado a palavra servir-se, visto que essa tem sentido pejorativo. Servir-se é derivada da palavra grega kherêsthai. Longe de ter um sentido de oprimir, de abusar, servir-se de algo é abstrair dele tudo o que ele oferece, há um código no entanto, entre o que serve e o que é servido, no qual este deve conhecer e respeitar o movimento daquele, compreender sua singularidade, para que dessa forma possa intensamente receber os serviços que lhe são oferecidos. Da mesma forma servir-se se refere a uma maneira de lidar consigo mesmo, é uma atitude, um comportamento que mais que afirmar um estado emocional é experimentar estados extremos sem que a consciência seja dispensada. Estar num lugar e reconhecer que lugar é esse. 

Foi dito que a alma não é a essência abstrata do corpo e sim o que nos move em direção aos nossos desejos, a alma é o sujeito da ação, uma alma-sujeito… Sofre uma vertiginosa virada radical e coloca o sujeito na posição de objeto quando as fronteiras se diluem. A alma-sujeito se torna seu próprio objeto de escuta e atenção. Ocupar-se de si é enfim uma prática de ouvir os movimentos do mundo que revolvem nossa alma e nos impelem à ação.

O mestre, o educador, o filósofo têm o caráter de formar coextensivo à vida muito mais que a transmissão de conhecimentos, o mestre é aquele que sobretudo oferece ao seu pupilo algo nele mesmo que nunca lhe foi dado, uma nova percepção em si e portanto no mundo que o rodeia. Se porventura se encara o mestre como sábio e o seu aluno como ignorante é na tentativa de colocar  ao aprendiz uma natureza jamais manifestada em sua existência, traz-lhe da virtualidade novos maneiras, é insurgente porque contradiz todo conhecimento padrão e normalizado.

No grego há duas palavras que determinam o tempo: kairós hóra. hóra se refere ao momento que parece ser oportuno, conveniente, adequado para começar a exercer algo, de alguma forma parece querer dizer que existe um momento certo e ele é um tempo preconcebido.

Diferente é kairós. Este se refere ao momento que se perde o chão, ou seja, as referências se embaralham, é da qualidade de uma grande crise. A crise pode ser de cunho social ou existencial – mas é sempre uma retirada de certas estruturas que mantém uma estabilidade, seria como perder o chão. Como diz Sêneca isso nos faz com que defrontemos com o estado morbius, é o “momento em que o indivíduo está completamente deformado, atingido e perdido no interior de uma paixão que o possui por inteiro”.

Ocupar-se de si é então o uso que se faz dos instrumentos para a própria salvação diante de uma crise. É a estratégia de enfrentamento diante dos acontecimentos da vida. É uma arte (tékne).

*Esta leitura sobre o cuidado de si parte do estudo de Michel Foucault em A heterogênese do sujeito.

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