Anarquismo e território afetivo

A partir das diferenças de luta entre o anarquismo e a esquerda, como os grupos de resistências se dão na contemporaneidade, análise realizada a partir da leitura do autor contemporâneo, o anarquista Wolfi Landstreicher

A questão é discutir o território político do autor Wolfi Landstreicher que delineia a luta anarquista a partir dos seus textos intitulados Pensamentos bárbaros – Sobre uma crítica revolucionária da civilização Da política à vida – Livrando a anarquia do fardo esquerdista. 

No início do texto Da política à vida Landstreicher define porque o anarquismo não deve se atrelar à esquerda, pois aquele pressupõe liberdade de ação na sua luta política. Em primeiro lugar se faz necessário um desligamento dos métodos de planejamento de guerrilhas, não é possível um programa político predefinido, anteriormente elaborado, porque qualquer análise antecipada do acontecimento jogaria contra a imprevisibilidade dos acontecimentos. Para o autor isso soaria como uma imposição visto que não é possível antever as circunstâncias e as melhores ações a serem aplicadas em cada situação.

O segundo ponto que distancia a ação política anarquista da esquerda é a maneira de enxergar o oponente: enquanto a esquerda reivindica e apela ao sistema direitos ao povo, na anarquia o projeto é de destruição dos sistema instituído para depois dele criar outro modo de vida distante de sua imagem e semelhança. Nascido nesse sistema e resistentes a ele porque estabelecem relações outras que não se aliam ao poder, que se dão paralelas, confrontando com as ligações corroídas pelo capital, viciadas no sistema tecnológico.

Para Landstreicher, a ação de combate da esquerda, reivindicando ao sistema não pode originar um novo modo social e existencial porque está demasiado envolvida com o poder de congregação da democracia, como assim ele define:

              A democracia é aquele sistema de tomada de decisão separada e institucionalizada que requer a criação de consenso social para programas lançados. Embora o poder resida sempre na coerção, o quadro democrático ele é justificado através do consenso que pode atingir

Aquilo que congrega extinguirá as diferenças, afinal sua finalidade é alcançar a maioria representativa e consensual.

O terceiro e último ponto apresentado explica o progressivismo formulado na crença da evolução natural como sendo medíocre. Seria a fé de que aqueles direitos reivindicados no estado democrático desde a votação, reformas, até a tomada do poder alcançaria enfim outra realidade social. Para o autor isso é medíocre. Também aqui Landstreicher nega totalmente a efetividade desse tipo de luta de base que tem como base a confiança nas reformas. Revolução e reforma são excludentes uma da outra, pois a reforma continua atrelada ao poder vigente.

Já no texto Pensamentos bárbaros Landstreicher lança críticas ao que seria civilização. Uma crítica revolucionária, continua ele, deve perceber que tipo de relações são criadas nas cidades. Civilização é o lugar onde faz nascer as instituições sociais e são as que irão limitar o homem e a sua vontade pelos aparatos de controle como o Estado, a lei, a família, a religião, o trabalho, a tecnologia…

A transformação da sociedade não acontece sem uma luta prática e afetiva. Prática porque é necessário desafiar as circunstâncias atuais no mundo que está posto, e por isso mesmo atual: utiliza passado e futuro sem ser por eles definidos. Todo esse aparelhamento que forma a civilização conduz para a precariedade e o afastamento da vida porque há uma orientação no como se vive, existe uma modelo de bem-estar, um ideal do que se pensar, um desejo de segurança. “Os desejos dos indivíduos são subordinados a esse quadro”. O anarquista reafirma a ideia de afastamento dos modelos preestabelecidos pois esses são representações e geram através de inúmeros tentáculos ideológicos um mal estar coletivo.

Além dos procedimentos práticos que visam enfrentamento material, concreto, extensivo, o ataque deve acontecer também no plano afetivo. Há que se fazer uma crítica à moral, inclusive à moral assimilada, esta é a interiorização da ordem social. Afetivo por também pelos seus novos tipos de agrupamentos, agora formados em grupos de afinidade acima de tudo.

O enfrentamento nas duas linhas de combate, exterior e interiorizada, contra as instituições e contra a moral, de âmbito prático e afetivo, tem como meta não um modelo de sociedade mas a única alternativa para buscarmos de volta a vida. “Quando tomamos a decisão de tomar as nossas vidas de volta, em revolta contra a ordem social, estamos a escolher um modo de combater o mundo(…). Isto é verdade tanto a nível pessoal, como a nível da revolução social”. 

Trazendo as ideias centrais desse autor para a discussão que se opera nas linhas traçadas aqui podemos começar a instalar suas críticas e traçar o que poderia ser chamado de criação de território político e afetivo como uma não aceitação desse mundo que vivemos no presente.

Por que Landstreicher não se apoia nem nas lutas históricas nem na modelização de futuro e sim no presente? Há uma convergência para se estudar o que se passa no atual, justamente porque se é detectado aqui um presente débil no qual foi retirada a intensidade do tempo. Seja pela espetacularização da vida, pela dosagem controlada na distribuição dos afetos, pelo esvaziamento de sentidos rendidos pelo hábito, as vidas foram tragadas pela memória que se autojustifica como uma memória culpada ao fazer repetidas investidas sobre si mesma.

Isso se dá por uma construção lenta, realizada pouco a pouco e há muito tempo, com o propósito de duas ações simultâneas: o estranhamento do outro, do que se apresenta como desconhecido e a autodefinição de uma carapuça, uma máscara, a identidade. Pode-se perceber também, não raramente, o esforço para sair de um grupo de identificação mais marginalizado para outro mais aceitável socialmente. Para o anarquista a política da identidade é uma regulação do sistema: através da identificação em grupos identitários nós nos opomos um ao outro reforçando a opressão, ainda que pareça ser uma manifestação de desafio a mesma opressão.

O espaço que vivemos está em consonância com o indivíduo que queremos nos tornar. Ainda mais porque as potências a serem desenvolvidas em cada um é desconhecida até que se atualize, que as faça acontecer, que se deem no plano do real. Mais uma questão se faz: como visualizar de antemão o indivíduo que se quer ser, o espaço que se quer criar se se está imbuído no mundo que se vive?

Deveras só a não aceitação de qualquer representação política de organizações e partidos originará a aliança por grupos de afinidades, combativos na sua forma de ser na prática no qual a cumplicidade é requerida por fatores práticos e existenciais. Não se está preso à uma modelização de sociedade transcendental, só a necessidade é que pode criar os projetos que a atendem e não o contrário.

É possível pensar em definir a instauração de um cotidiano que se move para esse sentido como um movimento de necessidade, uma necessidade existencial, portanto voltada ao desejo de se exercer enquanto singularidade, como diferença.

Também pensar sobre que conceitos são importantes nessa nova realidade que se instaura a partir do desejo… Que outros conceitos criaríamos para ocupar o lugar da moral do século XVIII, século das luzes, como a Humanidade, a Liberdade…

É ainda possível a partir do coletivo urbano contemporâneo pensar o campo político sob o ponto de vista da cidade, no qual grupos urbanos ligados por afinidades (de resistência à padronização, à normalização, à estética) definem sua trajetória e delineiam suas vidas resistindo ao poder, ainda que todos estejam envolvidos nessa teia relacional.

 

 

 

 

 

 

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s